Oi
pai.
Sei que faz tempo. Muito mais tempo do que deveria ser
aceitável. Já se passaram quantos anos? Dez? Vinte? Não importa. Nada justifica
que um filho fique tanto tempo assim afastado de sua família. Hoje percebo isso
e me arrependo do tempo perdido e da preocupação que certamente causei a vocês.
Só peço que entenda, pai, um pouco do que me aconteceu também.
Em Mintarn, vocês tentaram a todo custo me dar uma vida
normal e livre das influências do regente e eu serei eternamente grato a vocês
por isso. Mas eu cresci e suas barbas brancas surgiram. Chegou o momento em que
eu deveria ajudá-los. Em um fim de mundo como Mintarn, não existem lá muitas
opções de trabalho como o senhor bem sabe. Hoje percebo que deveria ter te
escutado melhor e tentado mais outras áreas. Mas não foi o que aconteceu e
acabei indo para naquela porcaria de companhia mercenária. Mas isso o senhor
também já sabe.
Se, por um lado, estava feliz que não me obrigavam a
pegar em armas contra ninguém, por outra eu não suportava mais lavar convés de
navio, descascar batatas ou carregar coisas prum lado e pro outro como um
serviçalzinho medíocre, tendo que engolir aquele bando de idiotas me chamando
de “nanico” e essas merdas que os humanos falam pra se sentirem muito
superiores. Não sei o quanto eu demonstrava, pai, mas cada dia naquela
companhia me matava um pouco, me fazia menos eu. Sentia vergonha de mim e do
que estava fazendo ao nome “Buscapedra”.
Não bastasse isso, vi e fiz coisas que nem ouso
pronunciar. Perdão, pai, por ter desonrado tanto nosso clã, nossa honra, o
legado dos nossos ancestrais.
Quando aqueles bastardos me ofereceram a oportunidade de
subir um pouco no escalão, de sair do navio e estabelecer uma vida com
promessas de riquezas numa “das maiores cidades da Costa da Espada”… Eu sei,
mais uma vez não te escutei e por isso me arrependo tanto. Você me pediu tanto
que ficasse, me garantiu de todas as formas que dariam um jeito de nos
sustentarmos. Eu, agindo como um moleque idiota, ignorei tudo. Tinha raiva. Na
época, achava que era do senhor, que de alguma forma estava tentando me
cercear. Hoje, em perspectiva, percebo que a raiva era de mim mesmo, pai. Não
provaria nada pra você ou pra mãe. Seria pra mim mesmo.
Peguei o primeiro navio que partia rumo a Neverwinter. Algum
nobre pomposo daqui estava disposto a pagar uma boa quantia por gente disposta
a ajudar a cidade a se manter de pé.
Bom, acho que não preciso mais dizer o quão arrependido
estou. Nem sequer cheguei na maldita cidade e uma tempestade como nenhuma que eu
já tenha visto chacoalhou a porcaria do navio como um gigante balançando um
berço. O navio não segurou muito tempo e quando já tínhamos vista da cidade, os
mastros se partiram e viramos. Daquela noite, carrego comigo ainda o grito
desesperado dos meus companheiros tentando se salvar em meio ao mar revolto. E
depois, o silêncio. Tentei nadar, mas as ondas eram fortes e algo bateu na
minha cabeça. O silêncio imersivo das águas me tomava por inteiro e então,
escuridão.
Acordei dois dias depois numa cabana simples e soube que
fui salvo por um estivador local. Esse homem, pai, saiu de barco em meio a uma
tempestade para salvar a vida de pessoas, entende? Um homem que nada tinha a
não ser sua força e seu nome: Autarg.
Isso foi o começo de minha maior amizade nessa nova terra. Em meio a toda a
loucura que aconteceria no mundo, sabia que podia contar com Autarg para uma boa caneca de cerveja
na taverna no final do dia e ríamos e filosofávamos (depois de alguns tantos
canecos) sobre a vida. E cada dia que passava, cada história que contava a Autarg sobre o meu povo, sobre minha
família, sobre VOCÊS, pai… mais saudade sentia.
Ainda assim, precisava de dinheiro e ainda fiquei um bom
tempo com a companhia. Precisávamos ajudar a cidade e reconstruir e, quando
não, defender-se das loucuras que aconteciam por aqui. Aquela história toda com
a magia quebrada no mundo não ajudou nada, vou te dizer. Nunca entendi
exatamente o que provocou tudo aquilo e, pra ser sincero, não tinha muito tempo
pra pensar nessas coisas. Quando não estava ajudando na reconstrução de alguma
coisa, estava lutando (por vezes, fugindo mesmo!) pela vida.
Assim, pai, os anos se passaram e minhas barbas também
cresceram. Acho que o senhor se orgulharia delas. Acumulei umas tantas
cicatrizes que ainda doem. É bem verdade que também fiz umas boas amizades que
ainda me fazem sorrir. Procuro pensar que não foi tudo em vão: encontrei minha
vocação ajudando os outros. Cada vez mais, lembrava do que aprendemos quando
crianças sobre os valores do nosso povo. É engraçado como não damos o menor
valor no momento em que nos é ensinado. Pro senhor também foi assim? Imagino
que não, o senhor sempre foi um anão muito melhor do que eu jamais poderia
almejar ser.
A cidade recebe muita gente de fora, gente que, como eu,
precisa de ajuda para sobreviver em meio às tempestades do dia a dia, seja uma
chuva forte, a falta do que comer ou simplesmente de uma mão amiga que os ajude
a se levantar. Lembro-me de um rapazinho, um halfling que ajudei dessa forma.
Sempre muito taciturno e calado, consegui arrancar dele um sorriso que levo na
memória com carinho. Naquele momento, tive a certeza de que estava no caminho
certo.
Ajudando assim os viajantes, foi quase natural que em
algum momento eu chamasse o nome de Marthamnor Duin. E pai, os deuses não se
esqueceram de mim. Pelo contrário, acho que sorriem pro meu intento e sinto
suas mãos guiando meu caminho. Em cada ajuda, cada pedido atendido, sinto a
força dos nossos ancestrais pulsar em mim. Hoje, clamo seus nomes com vigor e
orgulho. O que eu não daria pra tê-lo ao meu lado num desses momentos…
Enfim, encontrei meu primo, Gundren. Lembra-se dele? Ele
conseguiu construir um belo nome pra si por aqui. Virou um importante anão de
negócios com transações por toda a Costa da Espada. Desde que o encontrei,
larguei a companhia e começamos a fazer uns trabalhos juntos e tenho levado o
Autarg comigo. É bom, depois de tanto tempo, ter rostos familiares por perto,
gente em quem possa confiar. O primo tem ajudado bastante, tanto financeiramente
quanto apoiando iniciativas de minha parte.
Certa noite, estávamos eu e Autarg na taverna, já bem
tortos, quando tivemos a brilhante ideia de começar nossa própria companhia,
criar um nome pra nós. Prometemos que seríamos diferentes daquilo que vivi antes.
Seríamos decentes. Seguiríamos os princípios de honra e tradição que me foram
passados. Que o companheirismo, a lealdade e a amizade estariam acima de tudo.
Fizemos planos e deliramos que ficaríamos ricos. Mas acima de tudo, pai, pensei
que essa companhia só poderia existir pelos valores passados por você. Por
isso, somos os Filhos de Rurik, em homenagem a você. Autarg não se convenceu
muito de que esse seria um bom nome, mas com o tempo acho que o convenço.
Afinal, se nós, o povo sob e sobre a montanha é pra ser conhecido pela
teimosia, que algo de bom saia disso, não é mesmo?
Mas enfim, estávamos bêbados. No dia seguinte, acordo com
uma dor de cabeça infernal como se goblins saltitantes pulassem lá dentro e tento
começar meu dia normalmente. É quando me surgem Autarg e Gundren, juntos, com
uma conversa sobre precisarmos de mantimentos e veículos e de recrutar mais
gente. Sem entender coisa alguma, procuro uma caneca d’água enquanto eles
parecem animados com alguma coisa que não faz o menor sentido pra mim. Só
depois de algum tempo e muitas perguntas desnorteadas é que entendo: Autarg e
Gundren já colocavam em movimento nosso ébrio plano da noite anterior.
Partiríamos em nosso primeiro trabalho assim que nossa equipe estivesse
completa para algum novo empreendimento de Gundren num vilarejo a alguns dias
de Neverwinter chamado Phandalin. Admito que ainda não entendo completamente o
que está acontecendo, pai, mas estou feliz. Sinto Marthammor me apoiando. Penso
que estamos fazendo a coisa certa.
Deixo
essa carta com um mensageiro enquanto sigo meu caminho para fora da cidade na
esperança de que ela o encontre forte e saudável como a lembrança que tenho de
ti. E se os grandes artesãos assim desejarem, nosso reencontro ainda será
forjado e eu, você e a mãe beberemos e riremos até que as montanhas não passem
de montes de poeira.
Com amor, saudade e a
força dos Buscapedra, seu filho,