sábado, 25 de setembro de 2021

A semana de folga de Brother

 Após 10 sessões da campanha do narrador Félix, finalmente terminamos as missões de iniciação na Sociedade Starfinder. Meu personagem é um andróide operativo chamado Brother. Não sabe porque tem esse nome, mas é a única coisa de que se lembra de seu passado. Acredita ser um modelo antigo, potencialmente de um período pré-Lacuna encontrado congelado no planeta Verces.

As dez sessões que jogamos compreendem a passagem de um dia inteiro transcorrido dentro da Estação Absalom. Nesse tempo, realizamos as missões, ficando Brother bastante ferido em uma delas. Segue seu relato dos dias seguintes aos acontecimentos das sessões.

1º Dia

Cansaço. Sensação nova. Não lembro de já ter sentido isso antes. Nenhuma novidade pra alguém que tem descoberto sensações diariamente.

Dormi cerca de 12h. Não sabia que era capaz de dormir tanto. Acordei com uma sensação estranha. Acredito que sonhei. Não tenho certeza porque não me recordo. Colegas dizem que isso é normal. Porém, acho estranho esse fenômeno de não ter controle sobre o que se passa em mim durante o período de descanso e recarga.

No aguardo de nova missão da Sociedade Starfinder, não tinha o que fazer. Saí pra rua e, pela primeira vez em algum tempo, olhei meu entorno. Não apenas passar a vista, mas olhar: atentar ao olhar desalentado dos transeuntes em seus percursos cotidianos, o excesso de luzes do centro, o som ruidoso da cidade ao meu redor... percebi que essas coisas provocavam algo em mim. Sensações boas ou ruins, me senti vivo. Resolvi investigar isso.

Observando as pessoas na rua, entendi que ainda estava vestido com minhas roupas "de missão". Meu objetivo primário tornou-se adquirir roupas novas. Fui a uma grande loja de departamentos e pedi ajuda a um atendente. O rapaz foi bastante educado e simpático. Pareceu não se espantar com minha aparência albina (sei que muitos o fazem). Aliás, me chamou de "fofo". Não entendendo exatamente o contexto do adjetivo (não me acho particularmente macio), chamei-o educadamente de "fofo" em troca. Saí da loja com um par de tênis, calças jeans, uma camiseta verde e o número do comunicador pessoal do rapaz anotado na palma de minha mão. Acredito que não faz mal ter contatos pela cidade.

De roupa nova e sentindo-me bastante confortável, fui a um parque próximo e lá passei a tarde observando plantas, animais e pessoas. Senti calma. Foi bom, embora intrinsicamente improdutivo.

Voltei à sede da sociedade onde estudei arquivos dos últimos séculos e ingeri uma refeição pré-produzida.

Dormi cedo.

2º Dia

Em meu segundo dia sem missão, senti vontade de retornar ao parque. No caminho, vi pessoas passando carregando grandes copos de bebidas quentes. Pareciam feliz. Quis aquilo. Perguntei a um deles, espantado com minha abordagem (ou com minha pele?), o que bebia. e descobri se tratar de café. Adquiri um grande copo  num estabelecimento próximo e segui para o parque para minhas observações ambientais. Impressionei-me com o bem-estar provocado por ações tão pequenas.

Talvez um pouco culpado por minha improdutividade, passei a tarde e noite estudando.

Comi uma refeição pré-processada e dormi cedo.

3º Dia

Adotando o café e meu passeio pelo parque como parte de minha rotina, passei minha manhã. À tarde, resolvi andar por outras regiões da estação. Vi lojas e estabelecimentos curiosos. Adentrei um estabelecimento de shows de mulheres strippers. Fiquei algum tempo e haviam fêmeas de diversas espécies. As humanas pareceram provocar algo em mim, mas ainda não consigo dimensionar essa sensação. Sua dança exótica e o ritual de colocar vouchers de crédito em suas poucas roupas íntimas me deixou confuso. No geral, posso dizer que apreciei, embora não entenda toda a dinâmica social daquele ambiente. Talvez precise retornar para investigar o assunto.

Saindo de lá, passei em frente a um cinema em uma área menos abastada da estação, nos andares inferiores. Chamou atenção por não parecer tão moderno quanto o resto das estruturas. Achei curioso e entrei. Observando os outros usuários, comprei pipoca e refrigerante a assisti a um filme considerado antigo, algo sobre um halfling com algum tipo de neuroatipicidade cognitiva que se sentava num banco de praça e contava histórias de sua improvável vida a estranhos. Foi somente ao rolar dos créditos que percebi uma nova particularidade em mim mesmo: escorriam lágrimas de meus olhos. Estranho, não me sentia triste ou com dor. Sentia algo forte em mim, mas ainda incerto. No entanto, era de algum jeito estranho, libertador.

Voltando aos alojamentos da Sociedade, pesquisei sobre o tema. Não cheguei a uma conclusão, mas desconfio que o processo por que passei tem relação com catarse.

Comi uma refeição pré-processada e dormi cedo.

4º Dia

Segui meu ritual matinal. Ponderava ainda sobre a sensação evocada pelo filme do dia anterior. Entendi que devia explorar mais daquilo.

Voltei para os alojamentos e busquei dispositivos de vídeo reprodução. Comecei a buscar filmes e descobri que há uma outra modalidade de entretenimento, as séries. Comecei a assistir a uma e, tendo terminado o primeiro episódio, fui tomado por extrema curiosidade que me levou a assistir mais um episódio. Assim segui e quando dei por mim, era tarde da noite e estava faminto, cansado e com sono. Pior: não havia terminado todos os episódios e meu desejo era persistir embora todos os meus instintos (?) me dissessem que deveria me poupar.

5º Dia

Dia seguinte e fui tomado por um forte desejo de permanecer sobre meu leito e assistir até o último episódio da série. Um sentimento misto de curiosidade e culpa tomava conta de mim.

Ao final da tarde e tendo terminado a série, percebi o estado deplorável em que me encontrava. Limpei-me e saí para a rua, mesmo já tendo perdido a luz do sol. Sentindo cheiros exóticos, segui para um pequeno restaurante. Fantástico como o prazer dos cheiros se manifesta e toda a pletora de reações que isso provoca no corpo. Mas foi somente ao provar dessa nova comida que percebi o quanto estava cansado da comida pré-processada que estava comendo nos alojamentos. Para muito além de seu valor nutricional, aquela comida parecia preencher em mim algum outro vazio até então indetectado. Senti-me plenamente satisfeito.

Foi quando olhei em volta. Sentadas nas mesas, haviam pessoas. Problemáticas, caóticas e deliciosamente reais. Casais que murmuravam confidências enquanto compartilhavam suas refeições. Famílias com crianças que se sujavam inteiras enquanto comiam. Amigos extravagantes que gritavam uns com os outros antes de se abraçarem e fazerem elogios e confissões ébrias. Divertia-me com tudo aquilo e subitamente fui acometido de uma conclusão. Estava só.

6º Dia

Meu passeio matinal pelo parque parece ser frutífero na profusão de ideias que produz. Enquanto tomava meu café, liguei para Pris-6. Entendi que, talvez, ela sendo também uma andróide, me entendesse e pudesse me ajudar a compreender melhor o processo pelo qual estou passando. Sei que tenho particularidades e os andróides dessa época são diferentes de meu período original (seja qual for). Mas achei que seria um bom começo. Assim, passei um dia em que levei-a ao cinema onde assistimos ao mesmo filme da outra noite. Levei-a ao mesmo restaurante e experimentos as mesmas e novas comidas. Ela fala muito mais do que eu  e foi importante pra mim perceber o mundo através de sua perspectiva. Divertimo-nos e voltei aos alojamentos satisfeito e leve. Já formulava planos para o dia seguinte

7º Dia

Tendo cumprido minha rotina matinal usual, voltei no início da tarde à loja de departamentos do primeiro dia. Procurei o atendente e o chamei para ir ao restaurante naquela noite. Marcamos local e horário.

Chegada a hora, lá estava o rapaz que nos encontrou, eu, Leon, Morphi e Pris-6 sentados à mesa desfrutando de farta comida. Todas as pessoas que conhecia e que haviam me depositado confiança estavam presentes. Achei que seria interessante revê-los fora do contexto de missões. Leon me chamou atenção que cheguei a sorrir a até mesmo a rir alto.

Percebi certa exitação no jovem quando nos encontrou, mas dentro de pouco tempo todos conversavam e brincavam normalmente. Todos sorriam. Todos pareciam se divertir. Peguei-me olhando de forma distanciada para toda aquela situação. Foi quando pensei: missão cumprida.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

"Mas estou só interpretando meu personagem!"

Nos últimos anos, a frase do título me provoca calafrios cada vez que a ouço. Minha experiência diz que na maioria das vezes em que é proferida, serve apenas para o jogador justificar alguma grande besteira, consciente ou não, que descarrilhou toda uma aventura. Chamemos a esses atos "descarrilhadores" de ações disruptivas.

Haverão aqueles que pregarão que não existem ações disruptivas, apenas narradores incompetentes demais para saber reagir às ações propostas pelos jogadores. Concordo até certo ponto. Mas é para além desse ponto que pretendo discutir certas questões relacionadas a um outro conceito: agência dos jogadores.

O interesse para a reflexão sobre esse assunto surgiu de uma conversa com um grande amigo meu recentemente. Ele me contava de como, anos atrás, participou de uma campanha onde criou um personagem covarde e que, portanto, tentava a todo custo fugir de qualquer possibilidade de risco. Convenhamos que isso, por si só, já dificulta um bocado um jogo em que se propõe que os personagens sejam aventureiros. Mas ignorando essa questão, ele me relata que em dado momento seu personagem realizou uma ação que travou todo o jogo e prejudicou o grupo todo, potencialmente acabando ou atrapalhando demais aquela campanha (tinha algo a ver com ele ter fugido com o único navio de uma ilha onde todos os outros personagens ficaram presos ou algo assim). O argumento desse meu amigo é que tal ação foi tomada porque o narrador não criou motivação suficiente para que o personagem dele quisesse ficar na tal ilha e não fez nada para impedir que ele fugisse com o navio.

Não estava lá pra observar as minúcias da situação e, pelos pontos apresentados, realmente me parece que faltou ao narrador um certo jogo de cintura pra lidar com a situação. No entanto, minha grande questão aqui é justamente enxergar um outro lado da situação: será que o jogador não poderia ter, ele mesmo, encontrado uma motivação para seu personagem? E é aqui que entramos numa faceta da tão falada agência dos jogadores que vejo ser pouco explorada.

Lendo o texto "A todos os narradores com quem jogarei" da Aline Silva, acho que ela levanta um tópico muito importante nos jogos de RPG: a elevação a uma categoria quase mítica a figura do narrador. E essa elevação acontece de inúmeras formas e na maioria, se não todas, de forma negativa. Criou-se uma cultura no meio rpgístico de verticalidade na relação narrador/jogador e Aline contesta exatamente isso. Nas palavras dela, “são duas partes de uma mesma narrativa” e eu concordo plenamente. Assim, cabe aos jogadores participar mais da narrativa e ao mestre dar esse lugar de expressão a eles.

A parte que vejo pouco explorada é o questionamento sobre a necessidade de o narrador ter que, constantemente, puxar essa agência. Claro, se ele não oferecer e tomar todo o espaço de fala pra si, isso não é possível e existe algo de muito errado (ou não, vai saber a dinâmica de cada grupo, não é mesmo?). Mas colocando aqui uma perspectiva subjetiva de quem curte um jogo equilibrado entre narrativa e jogabilidade, penso que os jogadores podem ser mais presentes, participativos e, palavra-chave, PROPOSITIVOS. Será que não cabe a eles também propor elementos da história? Não estamos falando aqui do jogador do nada assumir que dragões vermelhos subitamente cospem jujubas, mas de pequenas inserções muito bem-vindas.

Lembro de quando narrava uma campanha de Dragonlance e um dos personagens dos jogadores morreu (Eastwind, primeiro PJ morto pelas minhas mãos!). Lembro com ainda mais carinho quando, na sessão de jogo seguinte haveria o funeral do personagem e um dos outros jogadores tirou um papel detrás de sua ficha e recitou o poema “O último sopro do Vento do Leste” em homenagem ao companheiro morto. Ninguém mandou, pediu ou sequer indicou que ele deveria fazer aquilo. Foi uma ação espontânea e legítima de um jogador para acrescentar à história.

No entanto, nessa mesma campanha, haviam semanas em que, se eu não coordenasse e perturbasse meus jogadores para que o jogo rolasse, nada acontecia. Havia um senso geral de que, além de mim como narrador ter que coordenar a história, arbitrar as regras, interpretar os PdMs, tinha também que gerenciar as agendas de um bando de adultos.

Entendo que se construiu toda uma imagem do narrador como figura centralizadora de informações. É uma construção histórica e que tem relação com suas atribuições em maior ou menor grau. Mas acredito também que já passou da hora de deixarmos de lado esse paradigma paternalista em que os narradores têm que pegar seus jogadores pela mão para que as coisas aconteçam.

Retomando a questão do início desse texto sobre ações disruptivas, acho que cabe aos jogadores também terem certo bom senso de jogar COM o mestre e não CONTRA ele, forma como enxergo a relação entre o narrador e o jogador da história de meu amigo. No final, não competiam no sentido tradicional que imaginamos com o narrador tentando matar os personagens, mas era uma competição de egos e inteligências ali que não fez nada senão quebrar um jogo potencialmente bacana.

Concluindo, defendo totalmente a agência dos jogadores (e tenho consciência de que eu, enquanto narrador, ainda tenho muito o que trabalhar nesse sentido), mas vou um passo além do “narrador que dá espaço” e peço que os jogadores quebrem essa relação de dependência, propondo. E entendo que talvez seja mais fácil a jogadores que também tenham experiência narrando, mas tentem pensar no lugar do seu narrador. Tentem entender um pouco quais dilemas estão sendo propostos ali e das dificuldades que ele está passando e joguem também com isso. Não apenas “interpretem seu personagem” de forma egoísta. Interpretem dentro de um contexto de uma história que está sendo contada coletivamente, pelo esforço e dedicação de cada um envolvido. Se faltarem motivações ao personagem, lembre-se que o jogador tem a maior delas: continuar jogando e se divertindo com seus amigos.

Sombras em Nostar

Eles levavam suas vidas cotidianas. Pescavam, caçavam, colhiam, construíam. Nada de extraordinário, heróico ou particularmente interessante....