segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Bio: Aron Buscapedra

Oi pai.

         Sei que faz tempo. Muito mais tempo do que deveria ser aceitável. Já se passaram quantos anos? Dez? Vinte? Não importa. Nada justifica que um filho fique tanto tempo assim afastado de sua família. Hoje percebo isso e me arrependo do tempo perdido e da preocupação que certamente causei a vocês. Só peço que entenda, pai, um pouco do que me aconteceu também.
            Em Mintarn, vocês tentaram a todo custo me dar uma vida normal e livre das influências do regente e eu serei eternamente grato a vocês por isso. Mas eu cresci e suas barbas brancas surgiram. Chegou o momento em que eu deveria ajudá-los. Em um fim de mundo como Mintarn, não existem lá muitas opções de trabalho como o senhor bem sabe. Hoje percebo que deveria ter te escutado melhor e tentado mais outras áreas. Mas não foi o que aconteceu e acabei indo para naquela porcaria de companhia mercenária. Mas isso o senhor também já sabe.
            Se, por um lado, estava feliz que não me obrigavam a pegar em armas contra ninguém, por outra eu não suportava mais lavar convés de navio, descascar batatas ou carregar coisas prum lado e pro outro como um serviçalzinho medíocre, tendo que engolir aquele bando de idiotas me chamando de “nanico” e essas merdas que os humanos falam pra se sentirem muito superiores. Não sei o quanto eu demonstrava, pai, mas cada dia naquela companhia me matava um pouco, me fazia menos eu. Sentia vergonha de mim e do que estava fazendo ao nome “Buscapedra”.
            Não bastasse isso, vi e fiz coisas que nem ouso pronunciar. Perdão, pai, por ter desonrado tanto nosso clã, nossa honra, o legado dos nossos ancestrais.
            Quando aqueles bastardos me ofereceram a oportunidade de subir um pouco no escalão, de sair do navio e estabelecer uma vida com promessas de riquezas numa “das maiores cidades da Costa da Espada”… Eu sei, mais uma vez não te escutei e por isso me arrependo tanto. Você me pediu tanto que ficasse, me garantiu de todas as formas que dariam um jeito de nos sustentarmos. Eu, agindo como um moleque idiota, ignorei tudo. Tinha raiva. Na época, achava que era do senhor, que de alguma forma estava tentando me cercear. Hoje, em perspectiva, percebo que a raiva era de mim mesmo, pai. Não provaria nada pra você ou pra mãe. Seria pra mim mesmo.
            Peguei o primeiro navio que partia rumo a Neverwinter. Algum nobre pomposo daqui estava disposto a pagar uma boa quantia por gente disposta a ajudar a cidade a se manter de pé.
            Bom, acho que não preciso mais dizer o quão arrependido estou. Nem sequer cheguei na maldita cidade e uma tempestade como nenhuma que eu já tenha visto chacoalhou a porcaria do navio como um gigante balançando um berço. O navio não segurou muito tempo e quando já tínhamos vista da cidade, os mastros se partiram e viramos. Daquela noite, carrego comigo ainda o grito desesperado dos meus companheiros tentando se salvar em meio ao mar revolto. E depois, o silêncio. Tentei nadar, mas as ondas eram fortes e algo bateu na minha cabeça. O silêncio imersivo das águas me tomava por inteiro e então, escuridão.
            Acordei dois dias depois numa cabana simples e soube que fui salvo por um estivador local. Esse homem, pai, saiu de barco em meio a uma tempestade para salvar a vida de pessoas, entende? Um homem que nada tinha a não ser sua força e seu nome: Autarg. Isso foi o começo de minha maior amizade nessa nova terra. Em meio a toda a loucura que aconteceria no mundo, sabia que podia contar com Autarg para uma boa caneca de cerveja na taverna no final do dia e ríamos e filosofávamos (depois de alguns tantos canecos) sobre a vida. E cada dia que passava, cada história que contava a Autarg sobre o meu povo, sobre minha família, sobre VOCÊS, pai… mais saudade sentia.
            Ainda assim, precisava de dinheiro e ainda fiquei um bom tempo com a companhia. Precisávamos ajudar a cidade e reconstruir e, quando não, defender-se das loucuras que aconteciam por aqui. Aquela história toda com a magia quebrada no mundo não ajudou nada, vou te dizer. Nunca entendi exatamente o que provocou tudo aquilo e, pra ser sincero, não tinha muito tempo pra pensar nessas coisas. Quando não estava ajudando na reconstrução de alguma coisa, estava lutando (por vezes, fugindo mesmo!) pela vida.
            Assim, pai, os anos se passaram e minhas barbas também cresceram. Acho que o senhor se orgulharia delas. Acumulei umas tantas cicatrizes que ainda doem. É bem verdade que também fiz umas boas amizades que ainda me fazem sorrir. Procuro pensar que não foi tudo em vão: encontrei minha vocação ajudando os outros. Cada vez mais, lembrava do que aprendemos quando crianças sobre os valores do nosso povo. É engraçado como não damos o menor valor no momento em que nos é ensinado. Pro senhor também foi assim? Imagino que não, o senhor sempre foi um anão muito melhor do que eu jamais poderia almejar ser.
            A cidade recebe muita gente de fora, gente que, como eu, precisa de ajuda para sobreviver em meio às tempestades do dia a dia, seja uma chuva forte, a falta do que comer ou simplesmente de uma mão amiga que os ajude a se levantar. Lembro-me de um rapazinho, um halfling que ajudei dessa forma. Sempre muito taciturno e calado, consegui arrancar dele um sorriso que levo na memória com carinho. Naquele momento, tive a certeza de que estava no caminho certo.
            Ajudando assim os viajantes, foi quase natural que em algum momento eu chamasse o nome de Marthamnor Duin. E pai, os deuses não se esqueceram de mim. Pelo contrário, acho que sorriem pro meu intento e sinto suas mãos guiando meu caminho. Em cada ajuda, cada pedido atendido, sinto a força dos nossos ancestrais pulsar em mim. Hoje, clamo seus nomes com vigor e orgulho. O que eu não daria pra tê-lo ao meu lado num desses momentos…
            Enfim, encontrei meu primo, Gundren. Lembra-se dele? Ele conseguiu construir um belo nome pra si por aqui. Virou um importante anão de negócios com transações por toda a Costa da Espada. Desde que o encontrei, larguei a companhia e começamos a fazer uns trabalhos juntos e tenho levado o Autarg comigo. É bom, depois de tanto tempo, ter rostos familiares por perto, gente em quem possa confiar. O primo tem ajudado bastante, tanto financeiramente quanto apoiando iniciativas de minha parte.
            Certa noite, estávamos eu e Autarg na taverna, já bem tortos, quando tivemos a brilhante ideia de começar nossa própria companhia, criar um nome pra nós. Prometemos que seríamos diferentes daquilo que vivi antes. Seríamos decentes. Seguiríamos os princípios de honra e tradição que me foram passados. Que o companheirismo, a lealdade e a amizade estariam acima de tudo. Fizemos planos e deliramos que ficaríamos ricos. Mas acima de tudo, pai, pensei que essa companhia só poderia existir pelos valores passados por você. Por isso, somos os Filhos de Rurik, em homenagem a você. Autarg não se convenceu muito de que esse seria um bom nome, mas com o tempo acho que o convenço. Afinal, se nós, o povo sob e sobre a montanha é pra ser conhecido pela teimosia, que algo de bom saia disso, não é mesmo?
            Mas enfim, estávamos bêbados. No dia seguinte, acordo com uma dor de cabeça infernal como se goblins saltitantes pulassem lá dentro e tento começar meu dia normalmente. É quando me surgem Autarg e Gundren, juntos, com uma conversa sobre precisarmos de mantimentos e veículos e de recrutar mais gente. Sem entender coisa alguma, procuro uma caneca d’água enquanto eles parecem animados com alguma coisa que não faz o menor sentido pra mim. Só depois de algum tempo e muitas perguntas desnorteadas é que entendo: Autarg e Gundren já colocavam em movimento nosso ébrio plano da noite anterior. Partiríamos em nosso primeiro trabalho assim que nossa equipe estivesse completa para algum novo empreendimento de Gundren num vilarejo a alguns dias de Neverwinter chamado Phandalin. Admito que ainda não entendo completamente o que está acontecendo, pai, mas estou feliz. Sinto Marthammor me apoiando. Penso que estamos fazendo a coisa certa.
Deixo essa carta com um mensageiro enquanto sigo meu caminho para fora da cidade na esperança de que ela o encontre forte e saudável como a lembrança que tenho de ti. E se os grandes artesãos assim desejarem, nosso reencontro ainda será forjado e eu, você e a mãe beberemos e riremos até que as montanhas não passem de montes de poeira.

Com amor, saudade e a força dos Buscapedra, seu filho,



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Eles levavam suas vidas cotidianas. Pescavam, caçavam, colhiam, construíam. Nada de extraordinário, heróico ou particularmente interessante....