Era um inverno intenso e o vento gélido soprava entre os
corredores sob a montanha sem piedade. As sentinelas procuravam o alento do
fogo das lamparinas, mas o gelo ainda assim formava sobre suas longas barbas.
Todos dormiam debaixo da proteção da grande montanha e o único ruído era o
assobio cortante do ar por entre as frestas da enorme cidade de pedra.
Cascos ressoam sobre o piso ricamente trabalhado da casa do
clã Undgart. Sem que qualquer sentinela notasse, sem que qualquer indivíduo se
apercebesse de sua chegada, um flagelado bode montanhês tropeça pata ante pata
no pátio externa da casa. O velho Delg, ancião do clã e senhor da casa, acorda
com o som repentino e sai pra ver do que se trata. O animal parado diante de
si, retira um monte de peles de carneiro que se encontram em seu lombo. Pra sua
surpresa, uma criança, fraca, desnutrida e descorada treme ante o frio caída
sobre o animal.
Nos dias, semanas, anos que se seguiram, muitos sussurrariam
pelos cantos que aquela era uma criança maldita, um mal agouro. Outros, menos
discretos, gritavam a Delg que se tratava de um enviado das forças abissais e
que nada sairia de bom de um bastardo como aquele. Mas Delg era calmo e sábio e
acolheu Torvin como a um irmão de seu filho quase da mesma idade, Dain.
Pelas leis, nunca poderiam ser iguais. Torvin nunca poderia
alcançar o prestígio de seu quase irmão. Mas isso não lhe importava. Assumindo
uma relação de meio irmão, meio empregado, Torvin cresceu um jovem anão forte,
robusto, um verdadeiro exemplo físico de seu povo. Tomou para si a função de
proteger Dain que, por sua vez, acomodou-se com a situação, tornando-se um
grande arruaceiro, beberrão e galanteador conhecido por toda a cidade, para a
desgraça de seu pai.
Contudo, um dia o velho Delg tornou-se canção entre os
pilares de pedra do reino sob a montanha. À época, as barbas de Dain e Torvin
já traziam longas tranças e o primeiro tornou-se senhor de seu clã. A
fraternidade entre eles encontrava-se mais forte do que nunca e Torvin assumira
pra si o compromisso de servir seu irmão como a um juramento.
Mas o coração é uma coisa complicada e palavras proferidas
podem perder-se em ecos cavernosos. E mesmo a mais dura montanha pode sofrer
mudanças à erosão do tempo.
Ela era linda e morava a poucas milhas. Ela era o único
motivo por que Torvin era capaz de deixar seu irmão em seus momentos de folga.
Sabia que nunca poderia tê-la em seus braços, ele, um bastardo. Sabia que ela
só poderia entregar seu coração a alguém com um nome que lhe sustentasse.
Alguém como Dain.
Conhecera Gurdis no funeral de seu padrasto. Ela trazia
longas tranças ruivas ricamente trabalhadas e adornadas do mais puro ouro
contrastando com sua pele alva em cujas bochechas salpicavam-lhe sardas como
sementes lançadas sobre a neve. O jovem que até então somente conhecera o
combate e o dever agora despertava para alguma nova sensação que não sabia
explicar. E quando finalmente entendeu, flagelou-se pela ideia de não poder
tê-la. Decidiu que ela seria de seu irmão e de mais ninguém.
Anos se passaram. Dain, agora senhor da casa, tornara-se
mais responsável e deveria encontrar uma esposa respeitável. Era quase natural
que ele e Gurdis se unissem, tanto pela ordem social que parecia indicar quanto
pelo estreitamento gradativo do relacionamento entre os dois. Mas, por algum
motivo que Torvin jamais pôde compreender, seu irmão jamais fez o avanço final
em relação à moça.
Assim, com o tempo, outros pretendentes surgiram. E foi um
desses, um mancebo que viera de outra cidade para reclamar a herança de um
parente distante, que acabou por conquistar a donzela. A noite em que ela
contou a Torvin de seu noivado talvez tenha sido a primeira vez que se ouviu
falar dos acessos de fúria do rapaz pois foram necessários inúmeros guardas
para impedi-lo de fazer mais besteiras.
Torvin afastou-se de sua paixão por algum tempo a fim de não
mais machucar-se. Com seu meio irmão a relação também já não era igual,
culpando-o pelo destino inesperado que ocorrera. Mas notícias chegaram de que,
logo após a união, o marido viajara e tardava a retornar. À distância, Torvin
observava e cuidava pra que sua amada nunca passasse necessidades pois o
marido, de fato, parecia tê-la abandonado.
Foi numa dessas noites de observação que o inesperado
aconteceu, algo que até hoje Torvin luta pra compreender e que inflama seu
coração com os fogos ardentes do abismo de onde dizem que ele saiu. Tudo estava
calmo quando ouviu o grito desesperado da aia de Gurdis. Correu pra dentro da
casa apenas para encontrar a moça em trajes de dormir rasgados, quase
inconsciente. Como por instinto, foi até a janela a procura do malfeitor e mal
pôde acreditar no que via: aquele com quem dividira toda uma vida, a quem
defendera incontáveis vezes ao longo de anos, ele, seu irmão agora fugia
covardemente depois de estuprar a mulher que tantas vezes ofereceu-lhe seu amor
que Torvin sabia que jamais poderia ter.
Dizem que o urro demoníaco, feroz, insano, débil, quase
incandescente do anão ainda ecoa sob a montanha. No entanto, quando ele
preparava-se para correr em direção ao objeto de toda sua ira, uma voz
trouxe-lhe de volta. Ela, Gurdis, fraca e condoída, pedia-lhe que ficasse. Ela,
seu único amor, pedia que ele não matasse Dain. Ela, o único alento numa vida
miserável, pedia que ele ficasse a seu lado.
E assim ele ficou. E novos invernos vieram e se foram e o
fruto daquela noite veio ao mundo na forma de Helga, a filha que Torvin nunca
teve com Gurdis. A filha que ele nunca viria a ter.
Ninguém nunca soube daquela noite ou sobre a criança. A essa
altura, Gurdis era sozinha no mundo, já órfã de pai e mãe e acabou por se
isolar para evitar mostrar ao mundo sua vergonha. Mas em seu isolamento, amou
sua filha com todas as forças. E amou também a Torvin como a um irmão. E ao
mesmo tempo em que isso preenchia o coração dele de pureza e felicidade, acoitava-lhe
também à alma por saber que nunca receberia o amor que esperava. Havia também a
dor da promessa que fizera de nunca atacar seu irmão.
Mas um dia o marido que abandonara Gurdis voltara sem que
ninguém soubesse. Helga era um bebê ainda, Dain e Torvin já haviam rompido
qualquer relação e o irmão nobre havia se casado com outra mulher. Todos
pareciam levar bem as suas vidas longe uns dos outros. Mas quando o marido
notou a criança e sabendo que ele não poderia ter sido o pai, foi tomado também
por uma fúria e um senso de traição. Espreitou a casa e esperou até que Torvin
estivesse longe. Sorrateiro, entrou pelos fundos e encontrou Gurdis dando de
mamar a Helga na sala. À visão do marido que pensara não mais estar vivo,
Gurdis imediatamente entendeu o que deveria fazer: entregou a criança para a
aia e pediu que fugisse, ficando a sós com aquele que seria seu carrasco,
estrangulando-a.
Torvin retornava à casa quando o homem pensava em deixa-la
para ir em busca da criança. O combate, foi rápido, porém violento. O homem que
há tantos anos deixara essa terra agora estava caído a seus pés, destruído,
ossos quebrados, porém vivo o suficiente para agonizar a cada respiro. Logo, nem isso. Entrando
na casa, Torvin viu seu mundo desmoronar. Ela também estava caída, quebrada,
ainda com as marcas dos dedos dele em seu pescoço. E o pranto escorreu de
Torvin tão voraz quanto qualquer acesso de fúria que tenha tido.
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